quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Da legislação à prática: reflexões sobre a lei 10.639/03 na escola

Desde 2003, quando foi instituída a lei 10.639, que determina a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas de ensino fundamental e médio de todo o país, muitos debates já aconteceram em torno de sua aplicabilidade na escola e da própria formação dos professores para trabalharem com as questões propostas no texto.
O ano em que essa lei foi implantada foi justamente quando iniciei minha carreira docente em uma escola estadual de Monte Mor, assim, pude acompanhar desde o início as discussões em torno da questão e a angústia dos professores sobre como implantar na prática aquilo que era proposto.
De lá para cá, é inegável que tivemos avanços promovidos não só através de cursos de formação oferecidos aos professores como também nos materiais didáticos que chegam à escola e servem de suporte para o trabalho em sala de aula.
Obrigatoriamente, todo livro didático deve trazer ao menos um capítulo que trate da cultura afro-brasileira e africana. Em Língua Portuguesa, área na qual atuo, o enfoque tem sido dado à literatura africana e à discussão das questões linguísticas envolvendo os países africanos que têm o português como língua oficial.
Desse modo, no ensino médio, o trabalho com autores africanos como Mia Couto, Pepetela, Agualusa e Ondjaki permite estabelecer uma relação entre a literatura brasileira e a africana e discutir sobre questões culturais e linguísticas que permeiam essas obras. No ensino fundamental, a abordagem se dá através de lendas e mitos africanos que frequentemente aparecem nos livros didáticos.
Além disso, a entrada dos livros “Terra sonâmbula”, de Mia Couto e “Mayombe”, de Pepetela, nos vestibulares da Unicamp e Fuvest, fez com que a discussão em torno dessa literatura fosse ampliada e, especialmente na rede privada, se tornasse um tema mais enfatizado do que era antigamente.
Contudo, apesar desses avanços ou do fato de que muitas escolas desenvolvem projetos relacionados ao Dia da Consciência Negra, há uma longa distância entre o que é feito na maioria das escolas e aquilo que se pretendia alcançar ao se criar uma lei desse tipo. 
Um dos objetivos primordiais da lei era romper com a visão eurocêntrica que permeia as salas de aula e combater o preconceito racial e a xenofobia, fazendo com que os alunos se identificassem com a cultura africana e percebessem a sua influência na construção da nossa própria identidade, porém, em um país marcado por um racismo velado e diante do nosso desconhecimento a respeito da cultura africana, essa tarefa torna-se mais difícil. 
Ao tratar sobre a literatura africana, por exemplo, o moçambicano Mia Couto questiona a respeito de que África escreve o escritor africano, uma vez que os autores africanos se deparam com a tarefa de não apresentar a África a partir de estereótipos culturais e folclóricos.  Esse dilema vivido pelos autores africanos, também precisa estar em foco nas salas de aula brasileiras, se o que o se pretende é realmente mostrar a riqueza e diversidade que marcam essa cultura e romper com as amarras que nos impedem de criar uma relação de pertencimento com África. Assim, é essencial que o professor desconstrua com seus alunos a visão estereotipada que circula, como se esse continente se resumisse a uma série de animais selvagens e muita pobreza. 
A construção de nossa identidade passa inegavelmente pela cultura de matriz africana e esse reconhecimento é essencial para que se rompa com o preconceito racial e aconteça efetivamente uma identificação entre os elementos culturais desse continente e a cultura brasileira. No entanto, é fundamental que o professor atue na desconstrução desses estereótipos e no rompimento dos preconceitos que envolvem a questão.
Inserir os autores africanos nas listas de vestibular, discutir a implantação de cotas nas universidades brasileiras, colocar no tema da redação do ENEM uma reflexão sobre as religiões afro-brasileiras, incluir capítulos sobre questões relativas à África nos livros didáticos são passos importantes, mas que só terão um real efeito se professores e alunos abrirem seus olhos diante de toda a diversidade que esse continente nos oferece. A literatura pode ser um caminho para alcançar os objetivos presentes na lei, contudo, ela só alcançará esse objetivo, se aprendermos realmente a enxergar o outro. Como diz Alberto Caeiro, “tristes de nós que trazemos a alma vestida”, portanto, já passou da hora de cada um de nós despir nossa alma e perceber toda a riqueza que o trabalho com a cultura africana e afro-brasileira nos traz.


Texto escrito por Adriana de Paula 

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