sábado, 4 de novembro de 2017

Literatura e identidade: considerações sobre literatura africana

O primeiro passo para refletir sobre a literatura africana é compreender que não existe uma única África, portanto, não existe uma única literatura. Cada país desse continente é marcado por uma história, por tradições e culturas diversas. Assim, essa multiplicidade também será refletida em sua produção literária.
Trataremos brevemente aqui da literatura produzida nos países africanos cuja língua oficial é o português, pensando no papel que a literatura exerce na própria construção da identidade desses povos a partir de seu processo de independência. 
Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe foram colônias de Portugal durante um longo tempo. Após muita luta e resistência, esses países conquistaram a sua independência e se depararam com o dilema de aceitar a língua do colonizador como sua própria língua. A literatura foi o caminho para essa aceitação e para a construção de uma identidade que fosse além das marcas deixadas pelo colonizador.
Nesse processo de construção da literatura africana, o Brasil teve um papel muito importante, como nos mostra Mia Couto, foi a partir da leitura de grandes autores brasileiros que os escritores africanos perceberam que poderiam enxergar o português como sua própria língua: “No outro lado do mundo, se revelava a possibilidade de um outro lado da nossa língua. Na altura, nós carecíamos de um português sem Portugal, de um idioma que, sendo do Outro, nos ajudasse a encontrar uma identidade própria. Até se dar o encontro com o português brasileiro, nós falávamos uma língua que não nos falava. E ter uma língua assim, apenas por metade, é um outro modo de viver calado”. 
A partir do contato com a obra de autores como Jorge Amado, João Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Rachel de Queirós e Manuel Bandeira, os autores africanos perceberam que, embora o português fosse a língua do colonizador, poderia ser também a sua língua e a literatura poderia ser o caminho de construção da identidade que eles buscavam. 
Em territórios marcadamente de tradição oral e com uma parcela muito pequena da população alfabetizada, a poesia foi o caminho encontrado para iniciar o percurso literário desses países. 
Essa produção poética passou por diferentes caminhos. Em um primeiro momento, os poemas indicavam uma alienação em relação à própria condição, não indicando ainda uma identidade literária. Em seguida, passam a ser produzidos textos que caminham para a construção de uma identidade e que vão abordar a dor de ser negro. A tomada de consciência vem a seguir, a partir de uma produção que revela a condição de colonizado e se volta para a análise sociocultural e geográfica do espaço habitado por esse escritor. Por fim, os autores alcançam a sua independência literária e passam a abordar temas de caráter mais autoral, tratando, por exemplo, da condição do mestiço e da identificação da África como “terra-mãe”. 
Os principais poetas responsáveis por esse percurso da literatura africana lusófona foram: os cabo-verdianos: Baltasar Lopes, Jorge Barbosa e Manuel Lopes; Caetano da Costa Alegre e Francisco José Tenreiro, de São Tomé e Príncipe; os angolanos Agostinho Neto (futuro presidente de Angola), Mário António, Viriato da Cruz, Alda Lara, António Jacinto e Mário Pinto de Andrade; os moçambicanos Noémia de Sousa, Carlos Cardoso e José Craveirinha; Vasco Cabral, António Baticã Ferreira, Amilcar Cabral, Helder Proença, Francisco Coutro de Pina, José Carlos Schwartz e Félix Sigá, de Guiné-Bissau. 
Na prosa, o caminho encontrado foi a retomada da tradição das narrativas orais. Através dos mitos e lendas que passam de geração para geração, os valores culturais desses povos são transmitidos e servirão de base para definir a identidade literária dos africanos lusófonos e de resgate de sua voz. Em Angola, o romance será um gênero bastante explorado e estará diretamente relacionado à luta pela libertação e construção do país, com destaque para autores como Luandino Vieira, Pepetela, José Eduardo Agualusa e Ondjaki.
Em Moçambique, o grande nome da prosa ficcional é Mia Couto, responsável não só pela constituição da literatura de seu país, como pela visibilidade que a própria literatura africana alcançou no mundo. Autor de uma obra marcada por um lirismo encantador, pela criação de novas palavras, por uma linguagem metafórica que dá um caráter de prosa poética aos seus escritos, Mia Couto é hoje um dos maiores autores contemporâneos e tem um papel importantíssimo na construção dessa identidade literária dos países lusófonos africanos. 
Como o próprio autor moçambicano afirma em sua obra O outro pé da sereia, “um livro é uma canoa. Esse era o barco que lhe faltava em Antigamente. Tivesse livros e ela faria a travessia para o outro lado do mundo, para o outro lado de si mesma”. Assim, sua obra e a de tantos outros autores africanos é a canoa que eles precisavam para construir muito mais do que uma identidade literária. A escrita desses autores foi um dos caminhos de construção da identidade cultural e linguística de um povo cuja vida foi marcada pela exploração, mas que foi capaz de lutar e resistir e constituir-se como nação. 

Por Adriana de Paula


Referências:

ABAURRE, Maria Luiza Marques e PONTARA, Marcela. Literatura: tempos, leitores e leituras. São Paulo: Moderna, 2015.
APA, Lívia; BARBEITOS, Arlindo e DÁSKALOS, Maria Alexandre. Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2003.
COUTO, Mia. “... e fazer do sonho uma casa”. O Estado de S. Paulo. São Paulo, 5 de abril de 2008. Caderno 2.
MACÊDO, Tânia e CHAVES, Rita. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas – Angola. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2007.
MACÊDO, Tânia e CHAVES, Rita. Literaturas de língua portuguesa: marcos e marcas – Moçambique. São Paulo: Arte & Ciência Editora, 2008.

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